quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Transforma-se o assassino na coisa assassinada


Tenho educado as minhas filhas para evitarem o adultério, a perda de sentidos e o amor. Sobre a droga não tenho dito nada, porque me parece menos nociva.

De acordo com o jornal i, o Supremo Tribunal de Justiça considera que o Tribunal da Relação de Guimarães não teve em conta que o assassino de uma mulher amava a vítima. É a última de uma série de decisões judiciais recentes que indica que, em Portugal, as mulheres não podem ser espancadas (a menos que sejam adúlteras), não podem ser violadas (a menos que estejam inconscientes) e não podem ser assassinadas (a menos que o assassino as ame). À cautela, tenho educado as minhas filhas para evitarem o adultério, a perda de sentidos e o amor. Sobre a droga não tenho dito nada, porque me parece menos nociva.

O caso é o seguinte: o tribunal de Guimarães condenou o homem a 13 anos de prisão. O Supremo determinou que a sentença devia ser reapreciada porque se, como mantém a defesa, “o arguido nutria muito amor pela vítima”, o crime terá pena até cinco anos de prisão. Entretanto, o assassino saiu em liberdade, por ter cumprido o máximo de dois anos de prisão preventiva. A ideia de que o amor pela vítima diminui a pena interessa-me muito, sobretudo na medida em que pode constituir um incentivo para tornar o mundo melhor. Jesus disse: “Ama o próximo como a ti mesmo.” É uma recomendação difícil de seguir, ou até desaconselhável, no caso de pessoas que tenham a minha autoestima. Se o Messias me pede para amar os outros como a mim, passo pela vida sem amar ninguém, o que é triste. Mas a lei portuguesa é superior à lei de Cristo: “Ama o próximo como a ti mesmo, porque isso garantir-te-á uma pena menor quando o matares.” Assim sim, o amor floresce, porque as pessoas reagem melhor à ideia de recompensa. Eu sinto-me muito mais motivado para amar gente. “Amor é fogo que arde sem se ver” é um bom decassílabo, mas “amor é desculpa para matar” não lhe fica atrás. E quem diz matar diz roubar. O amor é cego e não escolhe crimes. Se estrangular a pessoa amada, por oposição a estrangular um desconhecido que não se ama, tem redução de pena, roubar o nosso grande amor também devia beneficiar da mesma espécie de amnistia. O que significa que os tribunais terão de ser benevolentes comigo se eu alguma vez roubar o Benfica. Logo por azar, é dos crimes que menos me apetece cometer.

(Crónica de Ricardo Araújo Pereira, publicada na VISÃO 1342, de 22 de novembro de 2018) 

In visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-araujo-pereira/2018-11-29-Transforma-se-o-assassino-na-coisa-assassinada 

(consultado em 16.09.2019)

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