sábado, 28 de setembro de 2019

Conta lá a história das bibliotecas itinerantes

Às vezes, dou por mim a falar nisso perante uma plateia que me olha como se estivesse a dar notícias de um mundo meio real, meio imaginário. Não preciso de pensar muito no que estou a dizer porque, por preguiça, utilizo quase sempre as mesmas palavras, basta-me seguir o desejo de exotismo que encontro nos olhos que me fixam. Então, parece-me, sou um pouco como aqueles escritores africanos ou sul-americanos a quem se exige episódios coloridos, personagens singulares, anedotas, contos com moral.

Ainda assim, cada vez mais raramente, acontece estar alguém na sala que também conheceu essas bibliotecas, que também lá esteve. Então, de repente, as palavras voltam a ganhar significado, enchem-se. Ouço essa pessoa contar as suas memórias e, durante aquele instante, somos irmãos no olhar. As descrições têm préstimo, mas há uma presença muito mais funda, invisível, há a certeza de que, afinal, aquele tempo e aquele lugar existiram mesmo. Até eu já começava a duvidar.

As fitas adesivas coladas nas lombadas eram reais.

Uma vez por mês, ao fim da tarde, a carrinha Citroën chegava ao terreiro de Galveias, calhava-nos as quartas-feiras. Ficava estacionada em frente da cooperativa. Em Galveias, depois do 25 de Abril, o clube dos ricos passou a sede da cooperativa. Quando eu chegava, vindo dos lados do São João, já havia outros rapazes e raparigas à volta da carrinha.

Impressionava-me a quantidade de livros. Precisava de me esticar para chegar às prateleiras mais altas e, por isso, parecia-me que não tinham fim. O senhor Dinis conduzia a carrinha, recebia os papéis preenchidos com os códigos dos livros que requisitávamos, foi então que aprendi esse verbo, e era dentista. Eu conhecia-o da sala de espera, aquele cheiro antissético, onde aguardava a minha mãe e as minhas irmãs. Encontrei-o no ano passado na biblioteca de Abrantes, tirámos uma fotografia juntos. Aproveito para lhe enviar um abraço. Espero que esteja a ler estas palavras, com saúde.

Levávamos sempre a quantidade máxima de livros. E, sim, é verdade aquilo que costumo dizer: líamos muito depressa os que tínhamos e, depois, íamos trocando entre nós até ao regresso da biblioteca no mês seguinte.

Esse era também o tempo das sessões de cinema do Inatel no centro paroquial e na casa do povo. Foi dessa forma que, em Galveias, desci a ladeira, passei pela travessa da fonte e cheguei a casa com o rosto incendiado pelo Apocalipse Now. Foi também assim que assisti ao Baile, de Ettore Scola, sentado em cadeiras de tábua dura exatamente como aquelas em que assistia a bailes no salão da sociedade filarmónica. Poderia agora dar muitos outros exemplos.

Conheço as crianças de Galveias. Há dois anos, estive na escola onde também eu aprendi a ler e vejo-as na rua quando lá vou. No entanto, se quero identificá-las, tenho de perguntar-lhes quem são os seus pais. Nos sábados de manhã, ouve-se muito menos crianças a brincar do que no meu tempo. No ano passado, na minha terra, morreram mais de cinquenta pessoas e nasceram apenas duas.

As crianças de Galveias são iguais às de antes. Sinto pena que tenham menos do que eu tinha há quase trinta anos. Não se evoluiu. Na formação e na vida, a televisão não substitui a leitura e o cinema.

Ao falar de bibliotecas itinerantes aos meus filhos ou a essas crianças, sinto que sou como o meu pai quando me contava histórias da sua infância. Eu sabia que se tinham passado com ele mas, para mim, esse conhecimento era muito vago, pareciam lendas. No entanto, esse tempo era tão concreto como este. Um dia, este tempo, hoje de manhã, ontem, este preciso momento, será contado pelos meus filhos e por essas crianças com o mesmo tom com que agora falo de bibliotecas itinerantes. Naquele tempo, dirão. E aquele tempo será isto, tão concreto, tão prosaico, tão isento de magia. Estes objetos sem graça serão esse incrível futuro.

Eu, que estou aqui neste instante, também estava lá, a cheirar aqueles livros, a subir para a carrinha, a escutar a voz do doutor Dinis. Por isso, ainda que use as mesmas palavras até à exaustão, hei de continuar a repetir esta história. Sempre. É a minha história.

Peixoto, José Luís, in Visão, 31/03/2014

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Transforma-se o assassino na coisa assassinada


Tenho educado as minhas filhas para evitarem o adultério, a perda de sentidos e o amor. Sobre a droga não tenho dito nada, porque me parece menos nociva.

De acordo com o jornal i, o Supremo Tribunal de Justiça considera que o Tribunal da Relação de Guimarães não teve em conta que o assassino de uma mulher amava a vítima. É a última de uma série de decisões judiciais recentes que indica que, em Portugal, as mulheres não podem ser espancadas (a menos que sejam adúlteras), não podem ser violadas (a menos que estejam inconscientes) e não podem ser assassinadas (a menos que o assassino as ame). À cautela, tenho educado as minhas filhas para evitarem o adultério, a perda de sentidos e o amor. Sobre a droga não tenho dito nada, porque me parece menos nociva.

O caso é o seguinte: o tribunal de Guimarães condenou o homem a 13 anos de prisão. O Supremo determinou que a sentença devia ser reapreciada porque se, como mantém a defesa, “o arguido nutria muito amor pela vítima”, o crime terá pena até cinco anos de prisão. Entretanto, o assassino saiu em liberdade, por ter cumprido o máximo de dois anos de prisão preventiva. A ideia de que o amor pela vítima diminui a pena interessa-me muito, sobretudo na medida em que pode constituir um incentivo para tornar o mundo melhor. Jesus disse: “Ama o próximo como a ti mesmo.” É uma recomendação difícil de seguir, ou até desaconselhável, no caso de pessoas que tenham a minha autoestima. Se o Messias me pede para amar os outros como a mim, passo pela vida sem amar ninguém, o que é triste. Mas a lei portuguesa é superior à lei de Cristo: “Ama o próximo como a ti mesmo, porque isso garantir-te-á uma pena menor quando o matares.” Assim sim, o amor floresce, porque as pessoas reagem melhor à ideia de recompensa. Eu sinto-me muito mais motivado para amar gente. “Amor é fogo que arde sem se ver” é um bom decassílabo, mas “amor é desculpa para matar” não lhe fica atrás. E quem diz matar diz roubar. O amor é cego e não escolhe crimes. Se estrangular a pessoa amada, por oposição a estrangular um desconhecido que não se ama, tem redução de pena, roubar o nosso grande amor também devia beneficiar da mesma espécie de amnistia. O que significa que os tribunais terão de ser benevolentes comigo se eu alguma vez roubar o Benfica. Logo por azar, é dos crimes que menos me apetece cometer.

(Crónica de Ricardo Araújo Pereira, publicada na VISÃO 1342, de 22 de novembro de 2018) 

In visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-araujo-pereira/2018-11-29-Transforma-se-o-assassino-na-coisa-assassinada 

(consultado em 16.09.2019)

Andar de cavalo a ver a flor

O senhor Hua Han tinha um amigo chamado Gui Liang, que era coxo. Como Hua Han era um bom casamenteiro, o amigo pediu-lhe o favor de procurar uma rapariga jeitosa, pois queria casar. Por coincidência, Ye Qing, uma menina de nariz muito torto, falou também com Hua Han para lhe encontrar um noivo.

Hua Han pensou: "Se conseguisse fazer o casamento entre estes dois, seria ideal.”

Então o casamenteiro pediu a Gui Liang que passasse por casa de Ye Qing, mas a cavalo. E pediu a Ye Qing que, quando o pretendente aparecesse, pegasse numa flor, fingindo que estava a cheirá-la.

Assim, ela apaixonou-se pelo garboso cavaleiro e ele ficou todo encantado com a bela e delicada menina que cheirava uma flor.

Segundo os hábitos da época, o casamenteiro e as duas famílias começaram a tratar dos preparativos para a grande festa e os noivos só se voltaram a encontrar no dia do casamento.

Quando se viram sem disfarces, ambos perceberam por que razão um andava a cavalo e a outra cheirava a flor.

Contos da Terra do Dragão, rec., adapt. e trad. de Wang Suoying e Ana Cristina Alves, Ed. Caminho, 2000

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Lenda da bezerra de Monsanto

Reza a lenda que no tempo dos Romanos, a aldeia de Monsanto (hoje pertencente ao concelho de Idanha-a-Nova) viu-se cercada durante vários dias pelas tropas romanas. Os romanos, em vez de atacar a aldeia, esperavam pacientemente que o povo de Monsanto se rendesse devido à fome já que, estando cercados, não podiam deslocar-se aos terrenos para buscar mantimentos.

O povo de Monsanto estava desesperado mas resistia com heroicidade. O tempo ia passando e chegou a altura em que apenas havia uma bezerra para comer. Com o povo desesperado e a pensar na rendição, o chefe lusitano da aldeia teve uma ideia: deu de comer à última bezerra até que esta ficasse o mais gorda possível.

Em seguida, deslocou-se ao alto do castelo e disse aos romanos: “Ofereço-vos esta bezerra que nos sobrou do banquete da última noite porque sei que vocês devem estar cheios de fome e cansados de esperar pela nossa rendição. Trarei uma nova bezerra todos os dias para vos oferecer”.

O chefe romano, incrédulo, pensou que afinal os lusitanos ainda teriam muito alimento e que não valeria a pena atacá-los e portanto levantou tropas e foi-se embora.

Este episódio ainda se celebra hoje em dia em Monsanto, em que os seus habitantes lançam cantâros desde o alto da torre relembrando assim o feito do antigo chefe lusitano da aldeia.

Lenda de Tavarede


Tavarede é também conhecida pela “Terra do Limonete”, termo originado numa lenda que tem como protagonistas uma moura encantada e um cavaleiro cristão. 

Este último estava ao serviço de Cidel Pais, senhor que tinha Tavarede sob sua proteção. Segundo consta, ia o cavaleiro a caminho de Coimbra para participar na tomada desta cidade aos mouros quando, no monte de Santa Eulália, encontrou refugiadas numa gruta oito mouras encantadas, ali presas por um feitiço que seu pai, um chefe árabe, lhes havia lançado para não caírem em poder dos cristãos. 

Uma delas, de nome Kadija, explicou que o seu feitiço seria quebrado, assim um príncipe lhe repetisse três vezes: “sois bela como o Sol”. O cavaleiro logo quebrou o feitiço, dizendo a frase, ao que adiantou: “A terra para onde te levar aquele que vier desencantar-te será uma terra aprazível, rica de plantas aromáticas entre as quais uma de cheiro rústico e agradável, persistente e suave, que lhe dará nome e alcançará fama”. 

Assim se associou Tavarede aos cheiros aromáticos do limonete.

O rei vai nu


Era uma vez um rei muito vaidoso e que gostava de andar muito bem arranjado.
Um dia vieram ter com ele dois aldrabões que lhe falaram assim:
– Majestade, sabemos que gosta de andar sempre muito bem vestido – bem vestido como ninguém; e bem o mereceis! Descobrimos um tecido muito belo e de tal qualidade que os tolos não são capazes de o ver. Com um fato assim Vossa Majestade poderá distinguir as pessoas inteligentes dos tolos, parvos e estúpidos que não servirão para a vossa corte.
– Oh! Mas é uma descoberta espantosa! – Respondeu o rei. Tragam já esse tecido e façam-me o fato; quero ver as qualidades das pessoas que tenho ao meu serviço.
Os dois aldrabões tiraram as medidas e, daí a umas semanas, apresentaram-se ao rei dizendo:
– Aqui está o fato de Vossa Majestade.
O rei não via nada, mas como não queria passar por parvo, respondeu:
– Oh! Como é belo!
Então os dois aldrabões fizeram de conta que estavam a vestir o fato, com todos os gestos necessários e exclamações elogiosas:
– Ficais tão elegante! Todos vos invejarão!
Como ninguém da corte queria passar por tolo, todos diziam que o fato era uma verdadeira maravilha. O rei até parecia um deus!
A notícia correu toda a cidade: o rei tinha um fato que só os inteligentes eram capazes de ver.
Um dia o rei resolveu sair para se mostrar ao povo. Toda a gente admirava a vestimenta, porque ninguém queria passar por estúpido, até que, a certa altura, uma criança, em toda a sua inocência, gritou:
– Olha, olha! O rei vai nu!
Foi um espanto! Gargalhada geral. Só então o rei compreendeu que fora enganado; envergonhado e arrependido da sua vaidade, correu a esconder-se no palácio.

O burro e o azeiteiro


Dois estudantes encontraram, numa estrada, um azeiteiro com um burro carregado de bilhas de azeite. Os estudantes estavam sem dinheiro; por isso, decidiram roubar o animal. Enquanto o pobre homem seguia o seu caminho, um deles tirou a *cabeçada do burro e colocou-a no pescoço. O outro estudante fugiu com o animal e a carga. De repente, o azeiteiro olhou para trás e viu um rapaz em vez do burro. 

Nesse momento, o estudante exclamou: «Ah! senhor, quanto lhe agradeço ter-me dado uma pancada na cabeça! *Quebrou-me o encanto que durante tantos anos me fez ser burro!...» O azeiteiro tirou o chapéu e disse-lhe: «Afinal, o meu burro estava enfeitiçado! Perdi o meu *ganha-pão! Peço-lhe muitos perdões por tê-lo maltratado tanta vez - mas que quer? - o senhor era muito teimoso!» 

- Está perdoado, bom homem! - disse o estudante. O que lhe peço é que me deixe em paz. 

O pobre azeiteiro lamentou-se porque já não podia vender o azeite. Então, foi pedir dinheiro a um compadre para ir à feira comprar outro burro. Quando lá chegou, viu um estudante a vender o seu burro. O azeiteiro pensou que o rapaz se tinha transformado, outra vez, num animal! Aproximou-se do burro e gritou com toda a força: «Olhe, senhor burro, quem o não conhecer que o compre». 

(adaptado)
Conto Tradicional Português recolhido por Adolfo Coelho 

Glossário 

*cabeçada do burro (pop.). Peça de couro que se coloca na cabeça deste animal para o obrigar a seguir em frente. 

*Quebrou-me o encanto (pop.). Expressão que significa interromper um efeito mágico, um feitiço. 

*ganha-pão (pop.). Meio de subsistir e de viver. 

Novidade

Roteiro de poemas proibidos

O Clube de Leitura assinalou o Dia Mundial do Livro e os 50 anos do 25 de Abril com uma atividade de três horas - um roteiro pedestre pela c...